Direito Comercial Marlon Tomazette

Disputa entre acionistas não pode afetar a recuperação judicial

D

 

Credores do Grupo Daslu não conseguem impedir recuperação judicial

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou decisão da Justiça de São Paulo que reconheceu a falta de interesse e legitimidade recursal de determinados credores do Grupo Daslu – entre eles, uma empresa que também ostenta a condição de acionista minoritária – que buscavam impedir a concessão da recuperação judicial das famosas lojas de luxo.

Para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), “os acionistas, minoritários ou majoritários, não podem impedir a concessão de recuperação judicial derivada da aprovação do plano pela assembleia geral de credores”. Além disso, segundo o acórdão, “as querelas intrassocietárias deverão ser dirimidas no palco judicial adequado, e não nos lindes do processo de recuperação judicial”.

No STJ, os credores sustentaram violação do artigo 59, parágrafo 2º, da Lei 11.101/05. Segundo eles, na condição de credores devidamente habilitados, teriam legitimidade e interesse para recorrer da decisão que homologa o plano e defere o pedido de recuperação. Além disso, o fato de uma das recorrentes ser acionista minoritária jamais poderia acarretar ausência de legitimidade recursal e, ainda que assim fosse, esse entendimento não poderia prejudicar a ação dos demais credores que não têm relação societária com o Grupo Daslu.

Também se alegou que o recurso não trata exclusivamente de conflitos societários, mas também de graves ilegalidades que teriam sido praticadas na recuperação judicial, sendo a mais significativa delas a inexistência de avaliação em separado da marca Daslu.

Natureza societária

O relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que as questões suscitadas, oriundas de acordo de acionistas, têm natureza societária e, portanto, devem ser dirimidas em processo próprio. Dessa forma, a empresa acionista minoritária litigaria não na qualidade de credora, mas de sócia, o que, segundo o ministro, confirma a ilegitimidade reconhecida pelo TJSP.

O reconhecimento da falta de interesse recursal, acrescentou o ministro, decorreu do fato de que o plano de recuperação foi aprovado, com a análise das objeções apresentadas pelos credores em assembleia, “que decidiu favoravelmente à aprovação do plano de recuperação judicial, entendendo pela suficiência da avaliação do ativo com a juntada de laudo econômico-financeiro e pela viabilidade da alienação da UPI (unidade produtiva isolada), que incluiu a marca Daslu”.

Em relação à necessidade de avaliação da marca Daslu de forma individualizada, o ministro destacou que “a avaliação em separado da marca está diretamente ligada ao mérito do plano de recuperação, para o qual a assembleia geral de credores é soberana, como reconheceu a corte local, concluindo pela ausência de interesse dos recorrentes”.

Destaques de hoje

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1539445

COMENTÁRIOS:

Para boa parte da doutrina, a recuperação é um negócio jurídico privado realizado sob supervisão judicial[1], isto é, há uma natureza contratual na recuperação judicial. De modo similar, Rachel Sztajn e Vera Helena de Mello Franco afirmam que o plano “é um negócio de cooperação celebrado entre devedor e credores, homologado pelo juiz”[2], assemelhando-se a um contrato plurilateral.

Com efeito, o aspecto contratual se sobressai na recuperação judicial, na medida em que ela representa um grande acordo entre o devedor e seus credores. Há, indubitavelmente, um encontro de vontades entre tais sujeitos reforçando a natureza contratual. Não são vontades paralelas, mas vontades que se cruzam, vale dizer, há uma oposição de interesses[3] que entram em acordo para recuperar a empresa.

Jorge Lobo[4] critica a natureza contratual na recuperação, asseverando que ela obriga os credores ausentes e que, por isso, não haveria o acordo de vontades. Além disso, ele sustenta que a recuperação renova as obrigações dos credores mesmo contra sua vontade. Por fim, ele também assevera que a suspensão das ações e execuções em curso, bem como a possibilidade de concessão da recuperação, mesmo que não aprovada em todas as classes, afastaria a natureza contratual.

E não se diga que a possibilidade da concessão da recuperação, mesmo com a oposição de alguns credores, afastaria o acordo de vontades, porquanto, de qualquer forma, haverá o acordo entre a vontade dos credores e a vontade do devedor. Para todos os efeitos, a vontade dos credores pode decorrer da concordância tácita com o plano, ou da deliberação da maioria em uma assembleia. A fim de simplificar a atuação da recuperação, a lei permite que se considere a vontade dos credores em conjunto (massa de credores)[5], ainda que algum deles individualmente possua certas divergências. O conjunto de credores é tratado como uma comunhão para todos os efeitos, na recuperação judicial[6].

Outrossim, a atuação judicial também não desconfigura a natureza contratual da recuperação, na medida em que se trata de simples supervisão. O Poder Judiciário não impõe a recuperação, ele só poderá concedê-la caso se chegue ao acordo entre os credores. Portanto, a recuperação judicial é um acordo de vontades entre o devedor em crise e seus credores, que se manifestam em conjunto, por meio da assembleia de credores, uma vez que possuem uma comunhão de interesses.

Para o STJ, “A assembleia de credores é soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial. Contudo, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial.”[7] De modo similar, afirmou-se que

Afigura-se absolutamente  possível  que o Poder Judiciário, sem imiscuir-se na análise da viabilidade econômica da empresa em crise, promova controle de legalidade do plano de recuperação judicial que, em  si,  em  nada  contemporiza  a  soberania da assembleia geral de credores.  A  atribuição  de cada qual não se confunde. À assembleia geral  de  credores  compete  analisar, a um só tempo, a viabilidade econômica   da   empresa,  assim  como  da  consecução  da  proposta apresentada.  Ao Poder Judiciário, por sua vez, incumbe velar pela validade das manifestações expendidas, e, naturalmente, preservar os efeitos legais das normas que se revelarem cogentes.[8]

Assim, disputas entre sócios, fundadas nas relações societárias, não são capazes de impedir ou afetar a recuperação, ainda que um dos sócios também seja credor.

[1] PENTEADO, Mauro Rodrigues. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 84; ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 299; MARZAGÃO, Lídia Valéria. A recuperação judicial. In: MACHADO, Rubens Approbato (Coord.). Comentários à lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 92; CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime de insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 123; VILLANI, Gian Piero. In: DI PEPE, Giorgio Schiano (Coord.). Il diritto fallimentare riformato. Padova: CEDAM, 2007, p. 491.

[2] SZTAJN, Rachel; FRANCO, Vera Helena de Mello. Falência e recuperação da empresa em crise. São Paulo: Campus, 2008, p. 234.

[3] QUEIROZ, Jorge. Prevenção de crises e recuperação de empresas. In: OLIVEIRA, Fátima Bayma de (Org.). Recuperação de empresas. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006, p. 15.

[4] LOBO, Jorge. Recuperação judicial da empresa. In: OLIVEIRA, Fátima Bayma de (Org.). Recuperação de empresas. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006, p. 21.

[5] CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime de insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13.

[6] PORFIRIO CARPIO, Leopoldo José. La junta de acreedores. Madrid: Civitas, 2008, p. 42-43.

[7] STJ – REsp 1314209/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22-5-2012, DJe 1º-6-2012.

[8] STJ – REsp 1532943/MT, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13-9-2016, DJe 10-10-2016. No mesmo sentido: STJ – REsp 1587559/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 6-4-2017, DJe 22-5-2017; STJ – REsp 1660195/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 4-4-2017, DJe 10-4-2017.

Comentar

Por Marlon Tomazette
Direito Comercial Marlon Tomazette

Posts recentes

Categorias