Não compete ao Judiciário avaliar condições financeiras do plano de recuperação aprovado pelos credores
As bases econômico-financeiras do acordo negociado entre sociedades em recuperação judicial e seus credores, em regra, não estão submetidas ao controle judicial. Assim, por exemplo, o oferecimento de deságio e o estabelecimento de prazos longos para pagamento das dívidas não são, por si só, motivos aptos para a convolação de uma recuperação em falência.
Com base nesse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao recurso de uma indústria para restabelecer a recuperação judicial que havia sido transformada em falência pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
A assembleia que aprovou o plano de recuperação da indústria previu 70% de deságio e 20 anos para o pagamento de certas dívidas, o que foi considerado excessivo pelo TJSP.
Segundo a relatora do caso no STJ, ministra Nancy Andrighi, o plano aprovado pelos credores preencheu os requisitos legais, não sendo razoável que o Poder Judiciário opine acerca das condições estabelecidas e aceitas pelos participantes da assembleia.
Para ela, ainda que o plano de recuperação tenha frustrado os interesses de um desses credores, não há razão jurídica que sustente a tese do tribunal paulista quanto à nulidade das deliberações da assembleia geral, “sobretudo considerando que há previsão legal expressa conferindo à assembleia de credores a atribuição exclusiva de aprovar, rejeitar ou modificar o plano de soerguimento apresentado pelo devedor”.
Autonomia das partes
A magistrada destacou que o acordo firmado nos termos da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005) tem natureza contratual, o que evidencia a autonomia das partes.
“As partes envolvidas puderam avaliar em que medida estavam dispostas a abrir mão de seus direitos, a fim de minimizar prejuízos potenciais advindos de uma eventual decretação de falência, permitindo o soerguimento da sociedade”, disse ela.
Nancy Andrighi destacou que a empresa recuperanda afirmou em juízo ter quitado 64% das dívidas, incluindo os créditos trabalhistas. Dessa forma, segundo a ministra, a convolação da recuperação em falência iria contra o princípio da preservação da empresa, consagrado no artigo 47 da Lei 11.101.
Com o provimento do recurso, foi mantido o plano de recuperação aprovado pelos credores.
Leia o acórdão.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1631762
COMENTÁRIOS: Pela própria natureza contratual da recuperação judicial, é natural concluir que a decisão da assembleia de credores será soberana, isto é, não cabe ao juiz, a princípio, ir contra a vontade dos credores. Se estes aprovaram o plano de recuperação judicial, não caberia ao juiz rejeitá‑lo. Da mesma forma, se eles não aceitaram o plano, nem na forma alternativa, o juiz não poderia, a princípio, decidir pela aprovação do plano[1]. Dentro dessa concepção se imporia ao juiz um papel meramente homologatório[2] da decisão dos credores, não lhe cabendo uma intervenção mais ativa dentro do sistema brasileiro. Alberto Camiña Moreira chega a afirmar que não é o juiz que concede a recuperação judicial, mas os credores, cabendo ao juiz apenas a homologação dessa manifestação de vontade[3].
Para o STJ, “A assembleia de credores é soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial. Contudo, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial”[4]. De modo similar, afirmou‑se que
Afigura‑se absolutamente possível que o Poder Judiciário, sem imiscuir‑se na análise da viabilidade econômica da empresa em crise, promova controle de legalidade do plano de recuperação judicial que, em si, em nada contemporiza a soberania da assembleia geral de credores. A atribuição de cada qual não se confunde. À assembleia geral de credores compete analisar, a um só tempo, a viabilidade econômica da empresa, assim como da consecução da proposta apresentada. Ao Poder Judiciário, por sua vez, incumbe velar pela validade das manifestações expendidas, e, naturalmente, preservar os efeitos legais das normas que se revelarem cogentes[5].
Todavia, tal opinião não é pacífica, há quem reconheça um poder mais ativo de intervenção do juiz[6]. Jorge Lobo afirma que o juiz poderá não decretar a falência se vislumbrar que a rejeição do plano pela assembleia atenta contra o interesse público, encerra fraude ou importa em violação à lei[7]. Adalberto Simão Filho afirma que o juiz, fundado no art. 47 da Lei n. 11.101/2005, poderia analisar o mérito do plano de recuperação judicial e decidir pela concessão ou não da recuperação, independentemente da manifestação dos credores[8].
Como muito bem ressaltado por Eduardo Secchi Munhoz[9], estamos na verdade diante de um falso dilema, pois não se pode ser radical em nenhum dos dois sentidos. Não se pode atribuir ao juiz o papel de simples homologador das manifestações dos credores. De outro lado, o juiz também não deve ter o poder de interferir livremente na recuperação, ignorando a decisão dos credores, o que desvirtuaria a ideia de acordo na recuperação judicial. Portanto, há que se reconhecer a possibilidade de intervenção do juiz, mas devem‑se impor limites a essa intervenção.
[1]. MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, v. 4, p. 228.
[2]. CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime de insolvência empresarial. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 173.
[3]. CAMIÑA MOREIRA, Alberto. Poderes da assembleia de credores, do juiz e a atividade do ministério público. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 253‑254.
[4]. STJ – REsp 1314209/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22‑5‑2012, DJe 1º‑6‑2012.
[5]. STJ – REsp 1532943/MT, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13‑9‑2016, DJe 10‑10‑2016. No mesmo sentido: STJ – REsp 1587559/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 6‑4‑2017, DJe 22‑5‑2017; STJ – REsp 1660195/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 4‑4‑2017, DJe 10‑4‑2017.
[6]. ARAGÃO, Leandro de Santos. Assembleia Geral de credores: e agora? Um diálogo sobre a comunhão de credores e o direito societário. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos (Coord.). Direito societário e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 304.
[7]. LOBO, Jorge. In: ABRÃO, Carlos Henrique; TOLEDO, Paulo F. C. Salles de. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 150.
[8]. SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In: DE LUCCA, Newton; DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito recuperacional. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 58.
[9]. MUNHOZ, Eduardo Secchi. Anotações sobre os limites do poder jurisdicional na apreciação do plano de recuperação judicial. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, ano 10, n. 36, abr./jun. 2007, p. 192.