Direito Comercial Marlon Tomazette

CONCESSÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL MESMO SEM A CONCORDÂNCIA DOS CREDORES (CRAM DOWN)

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Para preservar empresa, juiz pode aprovar recuperação mediante cram down mesmo sem todos requisitos legais

Com o objetivo de preservar a empresa, manter os empregos e garantir os créditos, é permitido ao magistrado aprovar o plano de recuperação judicial em contexto de cram down – mecanismo que permite impor um plano que não teve a aprovação da assembleia – ainda que não estejam preenchidos todos os requisitos do artigo 58, parágrafo único, da Lei de Recuperação Judicial.

O entendimento foi fixado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao manter acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que confirmou a aprovação de plano de recuperação judicial mesmo após ele ter sido rejeitado por uma das três classes de credores.

Apesar da rejeição quantitativa (por cabeça, sem considerar o valor do crédito), o juiz da recuperação aprovou o plano com base na concordância de boa parte dos credores das demais classes e, mesmo no grupo que rejeitou a recuperação, considerou que o credor que aprovou o plano representava mais de 97% do total de créditos da classe.

“De fato, a mantença de empresa ainda recuperável deve se sobrepor aos interesses de um ou poucos credores divergentes, ainda mais quando sem amparo de fundamento plausível, deixando a realidade se limitar à fria análise de um quórum alternativo, com critério complexo de funcionamento, em detrimento da efetiva possibilidade de recuperação da empresa e, pior, com prejuízos aos demais credores favoráveis ao plano”, afirmou o relator do recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão.

De acordo com o artigo 45 da Lei de Recuperação Judicial, nas deliberações sobre o plano de recuperação, todas as classes de credores (titulares de créditos trabalhistas, titulares de crédito com garantia real e titulares de créditos quirografários – sem garantia especial) devem aprovar a proposta.

Todavia, segundo o artigo 58, parágrafo primeiro, o juiz poderá conceder a recuperação judicial mesmo sem a aprovação da assembleia, desde que tenham ocorrido, de forma cumulativa: o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos (inciso I); a aprovação de duas das três classes de credores, ou, no caso da existência de apenas duas classes, a concordância de pelo menos uma delas (inciso II); e o voto favorável, na classe que tenha rejeitado o plano, de mais de um terço dos credores (inciso III).

Requisitos

No caso em análise, dos três credores com garantia real, apenas um deles aprovou o plano de recuperação – um terço, portanto, e não “mais de um terço”, como exige o inciso III.  No entanto, o plano de recuperação foi aprovado por dois dos três credores quirografários presentes e pela totalidade dos credores trabalhistas que participaram da assembleia, cumprindo os outros dois requisitos para o cram down.

Apesar de não estar preenchido um dos requisitos legais, o magistrado aprovou o plano com base, além da possibilidade de preservação da empresa, no fato de que o credor com garantia real que aprovou o plano representava mais de 97% do total de créditos da classe.

Por meio de recurso especial, o Banco do Brasil alegou que o pedido de recuperação não poderia sequer ter sido conhecido, em razão do não preenchimento dos requisitos legais para o cram down. Além disso, para o banco, o juízo não deveria ter considerado apenas o valor dos créditos em detrimento da quantidade de credores.

Preservação da empresa

O ministro Luis Felipe Salomão destacou que a Lei 11.101/05 abarcou o princípio da preservação da atividade empresarial. Segundo ele, a legislação serve como parâmetro de condução da operacionalidade da recuperação judicial, que tem o objetivo de sanear o colapso econômico-financeiro e patrimonial da unidade produtiva economicamente viável, evitando-se a configuração de grau de insolvência irreversível.

“Nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à Lei 11.101/05, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial”, explicou o ministro.

Em relação ao mecanismo de cram down previsto pela lei, Salomão ressaltou que o intuito foi evitar o chamado “abuso da minoria” sobre o interesse da sociedade na superação do regime de crise empresarial, permitindo ao juízo a concessão da recuperação mesmo contra a deliberação da assembleia.

Com base nesses princípios de proteção à empresa, o relator lembrou que o TJSP, embora tenha reconhecido que não houve a aprovação quantitativa dos credores com garantia, manteve a aprovação do plano de recuperação com base na aprovação pelo credor que representava quase 100% do total de créditos na classe. Além disso, apontou Salomão, a aprovação não estabeleceu tratamento diferenciado entre os credores da classe que o rejeitou, bem como considerou manifestação positiva de boa parte dos credores.

“Assim, numa interpretação teleológica e finalista da norma, no intuito de salvar a empresa, manter os empregos e garantir os créditos, penso que a aprovação do plano foi realmente a melhor medida”, concluiu o ministro ao negar o recurso da instituição financeira e confirmar a possibilidade de flexibilização de decisão de cram down.

Destaques de hoje

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1337989

COMENTÁRIOS

Pela própria natureza contratual da recuperação judicial, é natural concluir que a decisão da assembleia de credores será soberana, isto é, não cabe ao juiz, a princípio, ir contra a vontade dos credores. Se estes aprovaram o plano de recuperação judicial, não caberia ao juiz rejeitá-lo. Da mesma forma, se eles não aceitaram o plano, nem na forma alternativa, o juiz não poderia, a princípio, decidir pela aprovação do plano[1]. Dentro dessa concepção se imporia ao juiz um papel meramente homologatório[2] da decisão dos credores, não lhe cabendo uma intervenção mais ativa dentro do sistema brasileiro. Alberto Camiña Moreira chega a afirmar que não é o juiz que concede a recuperação judicial, mas os credores, cabendo ao juiz apenas a homologação dessa manifestação de vontade[3].

Para o STJ, “A assembleia de credores é soberana em suas decisões quanto aos planos de recuperação judicial. Contudo, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial.”[4] De modo similar, afirmou-se que

Afigura-se absolutamente  possível  que o Poder Judiciário, sem imiscuir-se na análise da viabilidade econômica da empresa em crise, promova controle de legalidade do plano de recuperação judicial que, em  si,  em  nada  contemporiza  a  soberania da assembleia geral de credores.  A  atribuição  de cada qual não se confunde. À assembleia geral  de  credores  compete  analisar, a um só tempo, a viabilidade econômica   da   empresa,  assim  como  da  consecução  da  proposta apresentada.  Ao Poder Judiciário, por sua vez, incumbe velar pela validade das manifestações expendidas, e, naturalmente, preservar os efeitos legais das normas que se revelarem cogentes.[5]

Todavia, tal opinião não é pacífica, há quem reconheça um poder mais ativo de intervenção do juiz[6]. Jorge Lobo afirma que o juiz poderá não decretar a falência se vislumbrar que a rejeição do plano pela assembleia atenta contra o interesse público, encerra fraude ou importa em violação à lei[7]. Adalberto Simão Filho afirma que o juiz, fundado no art. 47 da Lei n. 11.101/2005, poderia analisar o mérito do plano de recuperação judicial e decidir pela concessão ou não da recuperação, independentemente da manifestação dos credores[8].

Como muito bem ressaltado por Eduardo Secchi Munhoz[9], estamos na verdade diante de um falso dilema, pois não se pode ser radical em nenhum dos dois sentidos. Não se pode atribuir ao juiz o papel de simples homologador das manifestações dos credores. De outro lado, o juiz também não deve ter o poder de interferir livremente na recuperação, ignorando a decisão dos credores, o que desvirtuaria a ideia de acordo na recuperação judicial. Portanto, há que se reconhecer a possibilidade de intervenção do juiz, mas devem-se impor limites a essa intervenção.

A Lei n. 11.101/2005 não trata especificamente do cram down, a nosso ver nem mesmo no art. 58, § 1º, porquanto nesta hipótese há uma maioria aprovando o plano e não são impostos requisitos para análise pelo juiz. Em razão do silêncio da lei, Gladston Mamede não reconhece ao juiz o poder de impor a aprovação do plano de recuperação[10]. Na mesma linha, Frederico Simionato afirma que o magistrado não pode contrariar a decisão da assembleia de credores[11].

De fato a legislação brasileira não dá parâmetros para uma eventual aprovação forçada do plano de recuperação. Apesar disso, os princípios estabelecidos no art. 47 e no art. 75 da Lei n. 11.101/2005 devem servir de fundamento para reconhecer ao juiz um papel mais ativo no processo de recuperação judicial.

Assim, deve-se entender possível a imposição do plano de recuperação judicial aos credores desde que não haja uma discriminação injusta, desde que se atenda ao melhor interesse dos credores e desde que o plano seja justo. Caberá não ao arbítrio, mas ao convencimento do juiz, a identificação desses critérios nos casos concretos para a aplicação de um cram down no Brasil, pelos benefícios que tal instituto traz. Eduardo Secchi Munhoz foi extremamente feliz ao afirmar que

[…] é hora de superar o dualismo soberania do juiz vs. soberania dos credores, que se tornou anacrônico no direito falimentar contemporâneo, em vista do consenso em torno da ideia de que o sistema deve procurar conciliar o papel do juiz, do devedor e dos credores na produção de soluções que atendam a função pública do direito da empresa em crise[12].

[1] MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, v. 4, p. 228.

[2] CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime de insolvência empresarial. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 173.

[3] CAMIÑA MOREIRA, Alberto. Poderes da assembleia de credores, do juiz e a atividade do ministério público. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 253-254.

[4] STJ – REsp 1314209/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22-5-2012, DJe 1º-6-2012.

[5] STJ – REsp 1532943/MT, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13-9-2016, DJe 10-10-2016. No mesmo sentido: STJ – REsp 1587559/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 6-4-2017, DJe 22-5-2017; STJ – REsp 1660195/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 4-4-2017, DJe 10-4-2017.

[6] ARAGÃO, Leandro de Santos. Assembleia Geral de credores: e agora? Um diálogo sobre a comunhão de credores e o direito societário. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos (Coord.). Direito societário e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 304.

[7] LOBO, Jorge. In: ABRÃO, Carlos Henrique; TOLEDO, Paulo F. C. Salles de. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 150.

[8] SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In: DE LUCCA, Newton; DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito recuperacional. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 58.

[9] MUNHOZ, Eduardo Secchi. Anotações sobre os limites do poder jurisdicional na apreciação do plano de recuperação judicial. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, ano 10, nº 36, abr./jun. 2007, p. 192.

[10] MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, v. 4, p. 228.

[11] SIMIONATO, Frederico A. Monte. Tratado de direito falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 183. No mesmo sentido: PIMENTA, Eduardo Goulart. Recuperação de empresas. São Paulo: IOB, 2006, p. 189-190.

[12] MUNHOZ, Eduardo Secchi. Anotações sobre os limites do poder jurisdicional na apreciação do plano de recuperação judicial. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, ano 10, n. 36, abr./jun. 2007, p. 199.

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