Direito Comercial Marlon Tomazette

CDC e cooperativas habitacionais – intepretação da Súmula 602 do STJ

C

 O consumo é a utilização que se faz de um produto ou de um serviço, comprando-o, apropriando-se dele ou exaurindo a sua utilização[1]. Trata-se de um fato natural na vida humana, inerente ao convívio em sociedade e, cada vez mais comum no mundo moderno. Pratica-se o ato do consumo para a satisfação das necessidades dos indivíduos e, por isso, não há como fugir dessa prática, pois todos têm necessidades.  Na teoria econômica moderna, desloca-se o interesse pela produção, pela oferta e pelo custo, para o consumo, a demanda e a utilidade[2].

O ato de consumir, em sentido amplo, envolve o “atrelamento”[3] ao produto ou serviço, desde sua obtenção até a sua utilização. A obtenção do produto ou serviço, apto a satisfazer os interesses de quem consome, pode  ser feita de forma isolada pelo próprio interessado, como por exemplo, no caso da extração da natureza de bens aptos a satisfazer certas necessidades, em comunidades autossuficientes. Todavia, na sociedade moderna, é cada vez mais difícil a autossuficiência, sendo necessário obter os bens por meio de outras pessoas, isto é, hoje é cada vez mais necessária e mais cômoda a troca de bens por outros bens, envolvendo essencialmente o dinheiro. Não há como vislumbrar uma sociedade sem relações de troca[4].

Dentre as relações de troca para a obtenção de produtos ou serviços, surge o que juridicamente se denomina relação de consumo a qual é definida como uma “relação jurídica existente entre fornecedor e consumidor tendo como objeto a aquisição de produtos ou utilização de serviços pelo consumidor”[5], como destinatário final. Trata-se em suma de uma relação entre dois sujeitos – consumidor e fornecedor – pela qual este entrega ao primeiro produtos ou serviços para que ele use como destinatário, não para repassá-los para frente. Ressalte-se, desde já, que  as categorias ‘consumidor’ e ‘fornecedor’ não definem indivíduos concretos, mas posições que podem ser ocupadas alternadamente pelos mesmos indivíduos no contexto das práticas cotidianas[6]. Não é objeto do presente estudo, detalhar os conceitos jurídicos envolvidos na relação de consumo, mas apenas analisar a finalidade da legislação específica, o Código de Defesa do Consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor – CDC será aplicável a qualquer relação jurídica que se enquadre como uma relação de consumo, com o objetivo de estabelecer um equilíbrio entre as partes da relação. Modernamente, não há como se nega a assimetria entre os envolvidos, que é reconhecida claramente na legislação de regência. O fornecedor normalmente tem muito poder e o consumidor apresenta uma vulnerabilidade, havendo um claro desequilíbrio de forças. Todavia, apesar desse desequilíbrio, é certa que nas relações de consumo deve se estabelecer uma igualdade, ao menos formal, para se estabelecer a relação de troca. Essa igualdade formal é buscada pela aplicação das normas protetivas do referido código.

Apesar de algumas opiniões em sentido contrário[7], é certo que a relação entre as cooperativas e os cooperados não se caracteriza por esse desequilíbrio que justifica a aplicação do CDC. As cooperativas atuam no interesse dos cooperados e não visam à produção de lucros no direito brasileiro, por isso, não há motivos que justifiquem a aplicação do referido código[8], pois o equilíbrio já está presente. Prova disso, é o fato de que cada cooperado tem direito a um voto, independentemente do tamanho da sua participação (Código Civil – art. 1.094, VI). Apesar de um eventual desvirtuamento das cooperativa de habitação, tal fato não pode ser considerado uma regra geral para justificar esse regime protetivo.

 

 Recentemente foi editada a Súmula 602 do STJ, pela qual “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos empreendimentos habitacionais promovidos pelas sociedades cooperativas”. (Súmula 602, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/02/2018, DJe 26/02/2018). Tal súmula, porém, deve ser interpretada com cuidado, pois todos os precedentes que a embasaram utilizam situações em que foi desvirtuado o espírito da cooperativa. Vale dizer, aplica-se o CDC nos casos em que a cooperativa presta serviços aos adquirentes das unidades imobiliárias, atuando como uma verdadeira incorporadora imobiliária, impondo aos adquirentes verdadeiros contratos de adesão.

Nas situações em que os cooperados não são meros aderentes, mas realmente sócios do empreendimento, tomando as decisões necessárias não haverá uma relação de consumo, mas uma relação societária. Infelizmente, na maioria das cooperativas habitacionais, o que se tem visto são verdadeiras incorporadoras e não relações cooperativas propriamente ditas. Por isso, a orientação da jurisprudência brasileira vem mitigando a autonomia da vontade para reconhecer nas cooperativas habitacionais algo muito similar a uma relação de consumo (compra do imóvel) e não uma relação societária.

Não se pode negar que as cooperativas habitacionais brasileiras têm sido desvirtuadas em muitos casos. Apesar disso, não se pode negar  que a relação existente ali é uma relação societária e autonomia da vontade deveria ser mais prestigiada. Talvez, o desvirtuamento das cooperativas no país tenha levado a jurisprudência brasileira a uma decisão mais equitativa, não negando completamente a autonomia da vontade, mas evitando que cláusulas estatutárias abusivas tragam situações de injustiça.

[1] RIVIÈRE, Claude. Introdução à antropologia. Tradução de José Francisco Espadeiro Martins. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 105.

[2] DE PINA, Susana; ARRIBAS, Victoria. «O cidadão consumidor: o nascimento de uma nova categoria». In: LEITÃO, Débora Krischke et al. (Org). Antropologia e consumo: diálogos entre Brasil e Argentina. Porto Alegre: AGE, 2006, p. 84.

[3] SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico. 4. ed, São Paulo: LTr, 1999, p. 587.

[4] GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 303.

[5] NERY JÚNIOR, Nelson. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coordenadora). Código de Defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 342.

[6] BEVILÁQUA, Ciméa B. «Notas sobre a forma e a razão dos conflitos no mercado de consumo». Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 26, n. 1-2, 2002, p. 310.

[7] CASTRO FILHO, Hyltom Pinto de. «Cooperativas de habitação no Brasil. Análise legislativa e jurisprudencial». Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2957, 6 ago. 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19698>. Acesso em: 8 maio 2012.

[8] TJDFT – Acórdão n. 516944, 20110020067774AGI, Relator JOÃO EGMONT, 5ª Turma Cível, julgado em 22/06/2011, DJ 05/07/2011 p. 126.

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