Constará obrigatoriamente da decisão que defere o processamento da recuperação judicial a determinação da suspensão das ações e execuções contra o devedor, a chamada automatic stay do direito americano[1]. Tal suspensão visa a dar algum fôlego[2] para que ele possa concentrar seus esforços na negociação do plano de recuperação. A medida visa a beneficiar somente o próprio devedor; havendo outros réus nas ações ou execuções, os processos continuarão em relação a estes[3]. A ideia é manter a situação econômico-financeira do devedor, enquanto ele tenta se reorganizar[4].
Como o objetivo é resguardar o devedor que pediu a recuperação judicial, eventuais codevedores solidários ou mesmo sócios atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica não se beneficiam de tal suspensão. O art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005, o qual prevê que “os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso” que, por isso, não podem se beneficiar dessa suspensão[5].
Nos processos contra o próprio devedor, os atos já praticados nos processos serão mantidos, mas novos atos não poderão ser praticados, salvo os urgentes (CPC/2015 – art. 314). Assim, sem a movimentação de processos, não ocorrerão penhoras, sequestros, arrestos ou atos de expropriação dos bens do devedor e, dessa forma, ele poderá ter um início tranquilo de recuperação[6]. Mesmo as novas ações eventualmente ajuizadas também serão suspensas, uma vez que a lei fala em ações e execuções contra o devedor (Lei n. 11.101/2005 – art. 6º) e não apenas em ações e execuções em curso. O objetivo é assegurar ao devedor o controle dos seus ativos[7].
Além de dar fôlego ao devedor, a suspensão em questão visa a resguardar a própria atuação dos juízes, na medida em que a recuperação poderá alterar as condições das obrigações do devedor. Ora, se as condições são alteradas, pode ocorrer que uma obrigação passe a ser exigível apenas no futuro e, por isso, não possa ser executada. Assim, permitir o trâmite de tal execução seria inócuo. Justamente por isso, as ações referentes a relações jurídicas posteriores não são atingidas pela suspensão[8], pois, como os créditos posteriores ao pedido de recuperação não se sujeitam a ela, não há risco de alteração das suas condições.
A proteção dada ao devedor não pode significar um sacrifício desarrazoado para os credores e, por isso, a suspensão não pode ser permanente. Ela será limitada a no máximo 180 dias, contados da publicação da decisão que defere o processamento. Dentro desse prazo, em tese, já deve ter sido concluída a fase deliberativa, concedendo-se a recuperação ou decretando-se a falência, vale dizer, dentro de tal prazo o devedor já deve solucionar suas relações com os credores. Caso a situação do devedor seja solucionada antes dos 180 dias, pela aprovação do plano de recuperação, cessa a suspensão das ações e execuções.
Embora a recuperação judicial seja regida por lei especial, a ela se aplicam também as regras do Código de Processo Civil supletivamente (Lei n. 11.101/2005 – art. 189). Especificamente no que diz respeito à suspensão das ações contra o devedor, surgiu uma grande dúvida sobre a contagem do prazo de 180 dias, indagando-se se tal prazo seria contado em dias úteis (CPC/2015 – art. 219) ou em dias corridos.
Os defensores da primeira opinião (contagem em dias úteis[9]) sustentam tratar-se de prazo processual, ou ao menos misto, o que ensejaria a contagem em dias úteis. De outro lado, há quem sustente que o prazo é de direito material e, por isso, será contado em dias corridos[10], uma vez que não se cogita da prática de nenhum ato processual específico. A controvérsia nesse momento ainda não se encontra resolvida.
A nosso ver, a contagem deve ser feita em dias úteis, na medida em que se trata de prazo misto. De fato, a suspensão das ações em geral (vide artigo 313 do CPC/2015) é um prazo de direito material, contado em dias corridos, pois realmente não é um prazo para prática de atos pelas partes. Todavia, para a recuperação judicial, tal prazo foi pensado em razão dos demais prazos previstos na lei (habilitações, divergências, apresentação do plano…) que são processuais em alguns casos. Assim, pode-se considera esse prazo de suspensão das ações como um prazo misto, pois foi pensado não apenas para a suspensão das ações, mas também para o andamento do processo de recuperação judicial. Em razão disso, a fim de evitar tumultos e conseguir cumprir sua função, entendemos que a contagem deverá ser feita em dias úteis.
Em casos excepcionais, a jurisprudência[11] tem admitido a extensão desse prazo, em prol do princípio da preservação da empresa. A propósito, o STJ já afirmou que: “Em homenagem ao princípio da continuidade da sociedade empresarial, o simples decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias entre o deferimento e a aprovação do plano de recuperação judicial não enseja retomada das execuções individuais quando à pessoa jurídica, ou seus sócios e administradores, não se atribui a causa da demora.”[12]
O STJ decidiu a matéria pela primeira vez no dia 10/04/2018
Contagem de prazos na recuperação judicial deve ser feita em dias corridos
A contagem dos prazos de suspensão das execuções e para apresentação do plano de recuperação judicial deve ser feita em dias corridos e ininterruptos, decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para o colegiado, esse entendimento atende melhor à especialização dos procedimentos dispostos na Lei 11.101/05, conferindo maior concretude às finalidades da Lei de Falência e Recuperação.
De acordo com o relator, ministro Luis Felipe Salomão, os prazos de 180 dias de suspensão das ações executivas em face do devedor e de 60 dias para a apresentação do plano de recuperação judicial deverão ser contados de forma contínua, sendo inaplicável a contagem em dias úteis prevista no Código de Processo Civil de 2015.
“O microssistema recuperacional e falimentar foi pensado em espectro lógico e sistemático peculiar, com previsão de uma sucessão de atos, em que a celeridade e efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, por conseguinte, contínuos, sob pena de vulnerar a racionalidade e unidade do sistema, engendrado para ser solucionado, em regra, em 180 dias depois do deferimento de seu processamento”, explicou o ministro.
Para Salomão, o advento do CPC/15 não alterou a forma de computar os prazos processuais no âmbito da recuperação judicial, prevalecendo a incidência da forma de contagem definida pelo microssistema da Lei 11.101/05.
Debate
A autora do recurso julgado pela Quarta Turma – uma empresa em processo de recuperação judicial – insistiu em que a contagem dos prazos deveria se dar em dias úteis, com base na previsão do novo CPC.
Segundo o relator, há um intenso debate doutrinário e jurisprudencial a respeito da extensão da aplicação do CPC/15 na contagem de prazos. Porém, afirmou, o CPC diz categoricamente que permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, e o critério de contagem em dias úteis é voltado exclusivamente aos prazos processuais.
Salomão lembrou que os institutos da recuperação judicial e da falência são extremamente complexos, e mesmo a Lei de Falência e Recuperação prevendo a incidência supletiva do CPC, isso não tornou a contagem em dias úteis compatível com o microssistema da Lei 11.101/05, uma vez que a subsidiariedade não pode conflitar com sua sistemática.
“A contagem em dias úteis poderá colapsar o sistema da recuperação quando se pensar na velocidade exigida para a prática de alguns atos e, por outro lado, na morosidade de outros, inclusive colocando em xeque a isonomia dos seus participantes, haja vista que incorreria numa dualidade de tratamento”, explicou Salomão.
Para o ministro, a aplicação do CPC/15 no âmbito do microssistema recuperacional e falimentar “deve ter cunho eminentemente excepcional, incidindo tão somente de forma subsidiária e supletiva, desde que se constate evidente compatibilidade à natureza e ao espírito do procedimento especial, dando-se sempre prevalência às regras e princípios específicos da Lei de Recuperação e com vistas a atender o desígnio de sua norma-princípio disposta no artigo 47”, disse.
[1] EPSTEIN, David G. Bankruptcy and related law in a nutshell. 6. ed. St. Paul: West Group, 2002, p. 149; TABB, Charles Jordan. The law of bankruptcy. New York: Foundation Press, 1997, p. 146.
[2] CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime de insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 143.
[3] EPSTEIN, David G. Bankruptcy and related law in a nutshell. 6. ed. St. Paul: West Group, 2002, p. 152; TABB, Charles Jordan. The law of bankruptcy. New York: Foundation Press, 1997, p. 170.
[4] PIMENTA, Eduardo Goulart. Recuperação de empresas. São Paulo: IOB, 2006, p. 127; BAIRD, Douglas G. Elements of bankruptcy. 4. ed. New York: Foundation Press, 2006, p. 207.
[5] STJ – AgRg nos EDcl no REsp 1280036/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20-8-2013, DJe 5-9-2013; AgRg no EREsp 1095352/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22-5-2013, DJe 24-5-2013; AgRg no CC 116.173/AL, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10-4-2013, DJe 15-4-2013.
[6] TABB, Charles Jordan. The law of bankruptcy. New York: Foundation Press, 1997, p. 146.
[7] BAIRD, Douglas G. Elements of bankruptcy. 4. ed. New York: Foundation Press, 2006, p. 208.
[8] MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2006, v. 4, p. 85.
[9] TJSP – 1ª Câmara Especializada de Direito Empresarial – AI nº 2159576-05.2017.8.26.0000, Relator Des. Carlos Dias Motta, j. 15/01/2018; TJRJ – 0004393-70.2017.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ROGÉRIO DE OLIVEIRA SOUZA – Julgamento: 01/08/2017 – VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL; TJDFT – Acórdão n.1037853, 07071901120178070000, Relator: ESDRAS NEVES 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 10/08/2017, Publicado no DJE: 16/08/2017; TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.16.092894-1/002, Relator(a): Des.(a) Gilson Soares Lemes , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 09/02/0018, publicação da súmula em 19/02/2018; TJRS – Agravo de Instrumento Nº 70073048290, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mylene Maria Michel, Julgado em 09/11/2017
[10]TJSP – 2ª Câmara Especializada de Direito Empresarial – AI nº 2140075-65.2017.8.26.0000, Relator Des. Claudio Godoy, j. 20/12/2017; TJRJ – 0043744-84.2016.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA – Julgamento: 05/04/2017 – VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL; TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.16.066764-8/002, Relator(a): Des.(a) Corrêa Junior , 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 05/09/2017, publicação da súmula em 13/09/2017
[11] STJ – CC 79.170/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10-9-2008, DJe 19-9-2008.
[12] STJ – REsp 1.193.480/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 5-10-2010, DJe 18-10-2010. No mesmo sentido: STJ – AgRg no CC 101.628/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 25-5-2011, DJe 1º-6-2011.